A liderança local dos bens globais: bem-estar de professoras/es e as complexidades da contextualização

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Tema(s):
Bem-estar de Professores e Professoras
Professores/as

Nossa falha em abordar e garantir o bem-estar de professoras/es na política e na prática educacional tem efeitos adversos na aprendizagem e nos resultados de bem-estar das/os estudantes. O bem-estar de professoras/es é fundamental para a oferta de educação de qualidade e equitativa para todos. Está, ainda, associado à construção de relacionamentos saudáveis ​​com as/os estudantes, à gestão eficaz da sala de aula, à implementação de programas de aprendizagem socioemocional e à melhoria do clima da sala de aula para que todas as crianças e jovens possam aprender melhor. Isso é válido para situações de conflito armado, deslocamento forçado, crises prolongadas e desastres naturais, e se tornou particularmente evidente durante a pandemia de COVID-19.

Para oferecer uma resposta a este problema, desde 2020, a INEE está a desenvolver um conjunto de ferramentas e recursos para apoiar o bem-estar de professoras/es em situações de emergência. Este artigo apresenta reflexões sobre o processo envolvido na contextualização de um desses recursos, bem como sobre as lições e as implicações para trabalhos futuros.

Kit de ferramentas e recursos para o bem-estar de professoras/es

Em abril de 2021, a INEE concluiu a fase 1 do projeto Kit de ferramentas para o bem-estar de professoras/es, que incluiu 1) o desenvolvimento de uma coleção abrangente e inter-relacionada de ferramentas multimédia existentes, estruturas, ferramentas de medição e outros recursos relacionados com o bem-estar de professoras/es em contextos de crise; 2) a elaboração de um mapa de recursos e evidências (ligado à publicação Análise contextual: o bem-estar de professoras e professores em cenários afetados por situações de conflito, crises e escassez de recursos e aos Requisitos Mínimos da INEE); e 3) a construção de um mapeamento com análise de lacunas de recursos e evidências, destacando as principais lacunas, que podem ser acessadas no Mapeamento sobre o bem-estar do professores/as e Relatório de análise de lacunas.

Em julho de 2022, a INEE concluiu a fase 2, com a publicação da Nota de Orientação para o Bem-Estar de Professores e Professoras em Contextos de Emergência, que captura práticas promissoras globais e aproveita a rica experiência e as perspectivas do Grupo de Referência sobre o Bem-Estar de Professoras e Professores, do Grupo de Trabalho sobre Professoras e Professores em Contextos de Crise - TiCC (anteriormente Grupo Colaborativo), do Grupo de Trabalho sobre AP-ASE (anteriormente Grupo Colaborativo), e das/os membros da INEE.

Para a fase 3, que se concentrou no desenvolvimento de ferramentas, a INEE procurou colmatar as lacunas evidenciadas na fase de mapeamento de recursos. Em especial, queríamos responder às recomendações apresentadas na análise de lacunas, sobretudo à recomendação 4: “Investir em guias de adaptação para apoiar a contextualização dos materiais disponíveis”.

Ao fazer essa recomendação, também buscamos entender o que “guias de adaptação para apoiar a contextualização dos materiais” poderiam significar ou como seriam na prática. Queríamos saber qual o investimento necessário para apoiar a contextualização dos materiais em termos de financiamento e desenvolvimento de recursos humanos. Também queríamos saber que tipos de perguntas, abordagens, adaptações e considerações são necessárias para tornar os materiais acessíveis, significativos e relevantes para professoras/es e outros profissionais da educação nos diversos contextos e culturas em que trabalhamos.

Contextualização das Notas de Orientação sobre o bem-estar de professoras/es - quatro contextos

Para realizar este trabalho, a INEE contratou quatro equipas de consultoras/es que trabalham em contextos de emergência para contextualizar os três princípios e cinco domínios da Nota de Orientação sobre o Bem-Estar do Professor. As equipas de consultoras/es representam:

  • Colômbia
  • Quénia (especialmente o Campo de Refugiados de Kakuma)
  • Myanmar
  • Palestina

Deliberadamente, deixamos o escopo do trabalho amplo, pedindo às/aos consultoras/es que: “documentassem o processo de contextualização usado em seu contexto específico para modelar possíveis abordagens bem-sucedidas para serem usadas em outros ambientes semelhantes. Esta será também uma oportunidade para explorar os desafios e as limitações da contextualização e fornecer uma melhor compreensão da variedade de processos que podem ser realizados para garantir que uma ferramenta (neste caso, a Nota de Orientação sobre o Bem-Estar de Professoras/es) seja 'adequada à sua finalidade'" .

Ao deixar o escopo de trabalho amplo, buscamos tornar o projeto menos prescritivo, permitindo que o processo de contextualização fosse definido e conduzido localmente. Em alguns casos, isso contribuiu para um conjunto imprevisto de desafios e complexidades, conforme indicado pelas equipes de consultoras/es:

“Embora a contextualização possa ser um conceito comum na esfera humanitária e de desenvolvimento, o conceito era estranho para muitos atores, particularmente para aqueles que trabalhavam no campo, como professoras/es e administradoras/es escolares. Para nossas/os pesquisadoras/es, entender a ideia de contextualização e o objetivo deste projeto foi um dos maiores desafios que enfrentamos”.

-- Reflexões sobre a contextualização da Nota de Orientação para o bem-estar de professoras e professores

 

“Na primeira reunião, discutimos o conceito de contextualização e o entendemos como: o processo de engajar as partes interessadas relevantes, que, no nosso caso, eram professoras/es e administradoras/es escolares para discutir, construir consenso e concordar sobre o significado da orientação global em sua situação local, de modo a tornar o conteúdo apropriado e significativo para elas/es”.

-- Reflexões sobre o domínio 3 da Nota de Orientação para o bem-estar de professoras e professores, Kakuma

 

“Embora o termo ‘contextualização’ seja conhecido por muitas partes interessadas, no nível de base, é completamente novo”.

-- Palestina - Contextualização do domínio 2 - Reflexões

 

“Compreender o bem-estar de professoras/es, assim como a ideia de contextualização e sua finalidade, apresentou-nos o maior desafio. Por exemplo, algumas/ns professoras/es não tinham liberdade para falar sobre seu bem-estar, como um professor explicou: ‘Por que dizer a verdade e perder meu emprego?’”.

-- Reflexões sobre o domínio 3 da Nota de Orientação para o bem-estar de professoras e professores, Kakuma


Apesar de nossos esforços para a decolonização da educação em emergências e a descentralização dos atores do Norte Global na política e na implementação de programas, as reflexões sobre até que ponto o conceito e o propósito da contextualização permanecem estranhos e abstratos representam uma tensão desconfortável: as agendas globais e as normas associadas continuam a excluir o conhecimento, as vozes e as prioridades de nossos colegas, reforçando, assim, as próprias realidades que buscamos mudar.  

Lições aprendidas nas quatro contextualizações

Cada equipa documentou suas lições aprendidas e os princípios sugeridos para a contextualização. Você pode lê-los na íntegra nos links a seguir:

A seguir, sintetizamos pontos-chave que ecoaram em cada uma das reflexões da equipa de consultoria:

  • “Envolver as partes interessadas de base, como professoras/es e administradoras/es escolares no processo de contextualização, oferece oportunidades únicas para ouvir novas vozes no setor humanitário. No entanto, isso também requer esclarecimentos sobre o significado da própria contextualização, bem como os termos-chave do bem global que está sendo adaptado”. (Myanmar)

  • Prestar atenção aos significados locais de termos e conceitos-chave pode revelar lacunas no bem global que são importantes a serem consideradas e abordadas na versão contextualizada.” (Myanmar)

  • “Esse tipo de trabalho demanda o investimento de grandes esforços de coordenação, especificamente neste caso de trabalho em um contexto de emergência, a fim de garantir que esses esforços sejam transferidos para as próximas etapas de planeamento, design e implementação do projeto e, acima de tudo, financiamento” (Palestina)

  • “Na Palestina, o contexto é separado em situações de emergência e desenvolvimento, enquanto, no trabalho em campo, o conflito na Palestina afeta todas as áreas com diferenças mínimas” (Palestina)

  • “O bem-estar de professoras/es foi recebido como uma necessidade secundária por algumas partes interessadas. Em uma entrevista com uma supervisora, ela indicou que “as/os professoras/es ainda carecem de necessidades básicas, como desenvolvimento profissional, salários adequados, melhores condições de trabalho, então, não estamos preocupados com o bem-estar (psicossocial)”. (Palestina)

  • “Aplicar uma abordagem multissetorial e multinível ajuda a colocar o bem-estar de professoras/es no centro das discussões” (Palestina)

  • “O bem-estar de professoras/es raramente é uma prioridade para o sistema educacional e pode não ser visto como um elemento importante que afeta o ambiente escolar e sua relação com a aprendizagem das/os estudantes.” (Colômbia)

  • “O calendário escolar impacta a disponibilidade das/os membros da comunidade escolar para participar de um processo de contextualização.” (Colômbia)

  • “As/Os professoras/es que trabalham em contextos vulneráveis ​​tendem a ter um alto nível de resiliência, portanto, a maneira de abordar o bem-estar e a saúde mental precisa ser feita com cuidado.” (Colômbia)

  • “Durante o processo de compartilhamento de descobertas, há a necessidade de adaptar o conteúdo de acordo com os diferentes públicos.” (Colômbia)

  • “Envolver professoras/es e dirigentes escolares no processo de contextualização oferece grandes oportunidades de ouvir suas vozes expressas em conjunto para um bem comum. No entanto, isso requer desmistificar termos como bem-estar e contextualização para facilitar a interpretação e a adaptação de tais termos no bem global.” (Quénia)

  • “Pedir às/aos professoras/es para atribuir significados a termos-chave, como ‘bem-estar’, em sua língua materna traz à tona as lacunas no bem global que podem ser abordadas na versão contextualizada.” (Quénia)

  • “O processo de contextualização requer tempo significativo, orçamento adequado e esforço. Como tal, a INEE deve ter isso em mente à medida que se esforça para contextualizar os bens globais no futuro.” (Quénia)

Lições para a INEE

Como uma rede cujo trabalho e influência está ancorado na produção de bens globais há mais de 20 anos, e em um momento em que a INEE está questionando sua posição e buscando se entender melhor através de uma lente de decolonialidade (veja nosso trabalho em andamento com o Coletivo darvaja), este projeto fornece exemplos concretos de tensões existentes e que estão, muitas vezes, arraigadas na sociedade. 

Se diminuirmos o zoom, estamos olhando para um projeto que foi concebido por atores no e do Norte Global na busca de melhorar o bem-estar de professoras/es que vivem em ambientes de emergência (que estão predominantemente no Sul Global). O Grupo de Referência sobre o Bem-estar de Professoras e Professores é um grupo diversificado de atores experientes da EeE, com membros de todo o mundo, e as/os consultoras/es que produziram a Nota de Orientação e a ANálise de Lacunas (que também representam múltiplas culturas e contextos) desempenharam um papel fundamental na concepção e na direção deste projeto. No entanto, permanece o fato desconfortável de que a proposta inicial não foi resultado de cocriação com nossas/os membros de maneira geral ou com professoras/es. As ramificações disso significam que, desde o início, fomos restringidos pelas circunstâncias de nosso projeto. Queríamos ser flexíveis e liderados por atores em campo, mas nos fechamos - e a todas as outras pessoas - em um acordo de projeto com orçamentos, entregas e prazos associados que precisavam ser cumpridos. Assim, embora estivéssemos entusiasmadas/os em encomendar quatro contextualizações locais da Nota de Orientação, limitações significativas, conforme observado por cada uma das equipas de contextualização, prejudicaram o alcance e o potencial deste trabalho. Portanto, é fundamental que reflitamos sobre as origens dessa situação e consideremos seriamente como podemos evitar a recriação de condições como essa, ao mesmo tempo em que oferecemos produtos e resultados de alta qualidade.

Como aprendemos, a contextualização é um esforço complicado. Ouvimos de cada equipa que, embora esse conceito seja amplamente entendido no campo do trabalho humanitário e de desenvolvimento, não é algo com o qual as/os professoras/es ou outras pessoas do contexto escolar estejam familiarizadas ou mesmo reconheçam a necessidade. Alcançar um entendimento e chegar a um acordo sobre o que a contextualização implica tem impactos no cronograma e no orçamento, além de refletir na forma sobre como todas as conversas sobre descolonização, contextualização e localização vêm acontecendo de forma isolada, de cima para baixo ou de fora para dentro - em nível global ou regional, o que, apesar de nossas melhores intenções, exclui as próprias pessoas que esses esforços buscam trazer à luz e incluir.

O que vem a seguir?

À medida que este projeto chega ao fim, recomendamos que você verifique os as entregas que resultaram desse esforço e considere como elas podem apoiar seu próprio trabalho:

A INEE está também a desenvolver um pack de formação para que você tenha recursos para organizar o seu próprio workshop sobre o bem-estar de professoras/es e desenvolver um plano de acção sectorial para abordar esse tema no seu contexto. Esses materiais estão atualmente sendo testados na Palestina com o apoio do Conselho Norueguês para Refugiados. A INEE publicará o pack de formação nos próximos meses.

Se você tiver alguma dúvida, reflexão ou comentário, ficaremos felizes em ouvi-lo e promover mais oportunidades de diálogo. Entre em contato com rachel.smith@inee.org.


 

Rachel Smith blog picRachel Smith é a Coordenadora de Apoio Psicossocial e Aprendizagem Socioemocional da INEE. Com experiência como professora de escola primária qualificada no Reino Unido, Rachel mudou-se para o campo de EeE há seis anos, começando com uma ONG nacional no Líbano, depois com prestação de serviços a pessoas refugiadas no Egito, e, mais recentemente, trabalhando com a Terre des Hommes Italia, no norte do Iraque. Rachel possui mestrado em Proteção de Refugiados e Estudos de Migração Forçada pela Iniciativa de Lei de Refugiados da Universidade de Londres. Rachel fala inglês e árabe.

 

Chris Henderson blog picChris Henderson é o Correpresentante do Grupo de Trabalho sobre Professores em Contextos de Crise da INEE. Antes de ingressar no mundo da EeE, Chris era professor secundário na Nova Zelândia. Ele trabalhou em iniciativas focadas no desenvolvimento de jovens e professoras/es em vários contextos, incluindo Bangladesh, Palestina, Indonésia e Ilhas do Pacífico com instituições como o UNICEF, a UNESCO e o Banco Mundial. Chris é mestre em educação pela University of Sydney e doutorando na Columbia University, em Nova York. Ele fala inglês e indonésio.

 


As visões apresentadas neste artigo são dos autores.