Concurso sobre Testemunhos de Educação em situações de Emergência

Publicado
Tema(s):
Adolescentes e Jovens
Deslocações Forçadas
Árabe
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Espanhol

Brightest HopeO Concurso de Testemunhos decorreu no final de 2014, no âmbito do décimo aniversário dos Requisitos Mínimos, a INEE, com o intuito de promover a partilha de conhecimento, sensibilizar a população em geral para a importância da Educação em situações de Emergência e em contextos de fragilidade e, ainda, criar uma oportunidade para que as pessoas pudessem partilhar as suas ideias e perspectivas sobre o que a educação significa para elas em tempos de crise.

Ao longo do Concurso foram submetidos 722 textos, em árabe, espanhol, francês e inglês, de 52 países, um pouco por todo o mundo! Todos os textos foram avaliados de forma anónima, em cada uma das categorias etárias em concurso, de acordo com os seguintes critérios: relevância para o domínio de Educação em situações de Emergência, clareza, criatividade e pensamento inovador, organização, coerência e impacto no leitor/a.

As experiência de vida traduzidas nos textos recebido são de tal modo fortes que foi feita uma seleção dos mesmos e produzida uma brochura com essa seleção, designada “The Brightest Hope: Essays from around the world on the importance of education in times of crisis” [Futuro Brilhante: testemunhos de todo o mundo sobre a importância da educação em tempos de crise].

Para além dos testemunhos destacados nesta brochura, foram nomeados três testemunhos vencedores, descrito sucintamente abaixo. Parabéns a cada uma das vencedoras! O nosso agradecimento a todas as pessoas que partilharam suas histórias connosco!

Gostaríamos de remeter o nosso agradecimento à WarChild Holanda por disponibilizar os prémios atribuidos aos testemunhos vencedores.
 

Testemunhos Vencedores:

Mehreen Mirza, 12 anos, Bangladesh
Faixa etária: 6 a 12 anos

A Mehreen está no 6º ano. Os seus passatempos são fazer recortes e ler histórias de encantar. Quando crescer, ela quer trabalhar numa organização e escrever artigos de sensibilização sobre os direitos humanos.

Testemunho: “A vida pode ser curta, a vida pode ser longa. A vida é sempre valiosa. Existem algumas necessidades, sem as quais o valor da vida é menor, como a educação, que é a base de um futuro forte. Ser analfabeta é como ser cega. Isto foi o que eu senti quando me foi retirada, durante algum tempo, a oportunidade de ser educada.

Ao longo dos últimos anos, eu perdi alguns dias de escola devido à instabilidade política. A minha aprendizagem foi seriamente prejudicada. A minha escola foi fechada, à exceção de alguns fins-de-semana e o programa não foi terminado. Os mais velhos comunicavam on-line mas, a minha turma não o podia fazer. Sem educação, senti-me inquieta e prejudicada.

Gostaria de dizer a todas as pessoas que estão em situações semelhantes que procurem saciar a sua sede de conhecimento de alguma maneira. Quando a educação nos é retirada, a nossa curiosidade e sede de saber mais pode ser insuportável. Sou grata àqueles que promovem a aprendizagem durantes estas situações.”



Ayesha Saleem, 14 anos, Paquistão
Faixa etária: 13 a 17 anos 

A Ayesha está no 9º ano. Ela gosta de ler romances, especialmente histórias de terror. Ela gosta de jogar jogos no computador, ver televisão, fazer novos amigos e conhecer pessoas novas. Quando crescer, ela quer ser médica.

Testemunho: “A Sobrevivente Sortuda

Acordei à medida que os raios de sol brilhante me tocavam no rosto. Era o meu primeiro dia de escola e o meu entusiasmo estava no auge. Como qualquer outra criança que pertença a uma família pobre, a escola era atraente para mim por uma razão especial. Mas eu nunca pensei que esse entusiasmo seria de tão curta duração e que estava prestes a acontecer uma tragédia.

Vesti-me rapidamente, devorei o pequeno-almoço e saí para a escola. Eu quase voava em direção à escola. O medo de cair era quase inexistente. O que mais me importava era a minha educação, a minha escola. Eu fui uma das primeiras alunas a chegar à escola. Depois das breves apresentações, o professor começou a aula. Eu escolhi o lugar ao lado da minha melhor amiga. O professor pediu-nos para tirar da mochila os nossos livros de Inglês e quando me voltei em direção à minha mochila algo me chamou a atenção.

Eu vi um enorme fluxo de água a correr na nossa direção. Eu congelei. Lembrei-me da preocupação do meu pai com as recentes inundações na nossa província e percebi logo o que estava a acontecer. Eu não conseguia respirar. Virei para ver os meus colegas de turma mas, eles já não estavam lá. O meu coração bateu acelerado dentro do peito. A inundação tinha atingido a minha cidade. Enquanto subia numa árvore ali perto, eu podia ver as pessoas a correr, tentando salvar as suas vidas. Comecei a chorar enquanto via a minha mochila flutuando para longe.

Não me lembro quem me tirou da árvore ou como fui para ao acampamento. Quando recuperei os sentidos, tentei encontrar os meus pais. Estava tudo destruído. Enquanto deambulava ao redor dos campos, eu vi a minha mãe a empacotar as coisas que a cheia teve a amabilidade de deixar para trás. Corri na sua direção e ela começou a chorar dizendo que teríamos que nos mudar, deixando a cidade em direção a zonas mais ‘seguras’. Eu podia ver o meu irmão enrolado numa bola, onde meu pai estava sentado segurando a cabeça entre as mãos.

A viagem entre o acampamento e a área ‘segura’ foi horrível. Tentei ao máximo bloquear os sons do choro e dos gemidos até que chegamos a casa dos nossos familiares. Assim que tomei consciência da realidade, as lágrimas começaram a correr pelo meu rosto. Eu sabia que tinha tido sorte por conseguir sair de toda a situação viva mas, a interrupção da minha educação deixou um vazio dentro de mim. Durante meses, tentei trabalhar como ama numa família rica que me tratou bem mas, sentia o coração apertado sempre que via crianças em idade escolar.

Quando o meu patrão ofereceu-se para pagar a minha escola, junto da minha mãe, eu pensei que era uma piada. Era bom demais para ser verdade, considerando que tinha aprendido com o meu passado que a vida é injusta. Hoje, considero-me um exemplo incrível de como a educação  molda as nossas vidas. Podemos facilmente encontrar milhões de crianças que não foram tão afortunadas como eu. Eu experimentei o que é educação em situações de emergência e é por isso que eu me considero a sobrevivente mais sortuda.”



Ivy Kimtai, 21 anos, Quénia
Faixa etária: mais de 18 anos 

A Ivy está a frequentar um bacharelato em Artes, particularmente em Teatro e Tecnologia de Cinema. Ela gostaria de construir uma carreira como autora e realizadora. Atualmente escreve para a revista da escola. Os seus passatempos incluem a leitura e a escrita, ver filmes e ouvir música, bem como viajar e fazer passeios turísticos.

Testemunho: “Desde que era miúda, eu sabia que para ser bem-sucedida na vida tinha que ir para a escola. Eu sou de uma pequena aldeia da região do Monte Elgon, no Quénia. Eu sabia que para conduzir um carro, tinha que ir para a escola. Isto porque me foi dito que todos aqueles que chegavam de carro à aldeia, tinham ido para a escola. Eu também queria um dia chegar à aldeia de carro, ter as crianças dos lados da estrada a assistirem, contentes por mim e, então, dar-lhes doces. À minha maneira, para mim a educação é importante.                                        

Eu frequentei uma escola em Monte Elgon com o intuito de obter o certificado de Ensino Primário. Quando eu estava na oitava classe, o último ano do ensino primário, a região Monte Elgon foi afetada por uma agitação civil e política. Felizmente, tive a sorte de frequentar a escola em regime de internato porque os meus colegas que vinham todos os dias para a escola, muitas vezes não conseguiam fazê-lo por motivo de insegurança e pelo medo que tomou conta da região. As forças rebeldes conhecidas como Sabaot Land Defence Forces (S.L.D.F)  aterrorizaram Monte Elgon. A principal razão para os ataques estava relacionada com luta pela terra. Eram impiedosos e não poupavam vidas, nem mesmo a dos animais. A sua tática era implacável, cortavam as orelhas das pessoas, amputavam pernas, foi um massacre. Lembro-me de ouvir as vozes abafadas dos professores  falando na sala dos professores sobre o quão má era a situação. Ouvi um deles a contar que tinha visto, escondido num arbusto, a sua família ser abatida, sem que ele pudesse fazer nada. Lembro-me que o ouvi chorar lamentando sentir-se tão impotente. A escola era o único lugar seguro, já que os soldados quenianos protegiam o espaço.

As crianças deixaram de vir à escola. O meu melhor amigo faltou à escola durante quase uma semana, deixando-me muito preocupada. Ele era o único que me podia dizer como estava a minha família. Eu estava preocupada com ele, com a sua família e com a minha aldeia. Os exames estavam a aproximar-se. A maioria dos professores agora vivia na escola e como a maior parte dos alunos da oitava classe eram internos, continuamos a fazer a revisão para os exames.        

Os professores diziam-nos que a vida tinha que seguir em frente e que tínhamos ainda mais uma razão para estudar, já que a educação seria a nossa única saída. Trabalhávamos ouvindo os tiros e observando as casas da aldeia vizinha arderem, depois de terem sido incendiadas. Chorávamos pelas vidas das nossas famílias todas as noites quando fazíamos as nossas orações, debaixo das camas. Vivíamos no medo. Perante o pio constante das corujas, os tiroteios eram cada vez piores e mais ruidosos durante a noite. Como não podíamos usar as latrinas, usávamos um balde nos dormitórios, cujo cheiro era muito melhor do que o cheiro de morte e sangue fresco que cobria o ar da noite.                         

Um dos dias mais negros daquela época foi aquele em que soubemos que o nosso professor de Kiswahili [...] tinha sido morto. Toda a escola ficou tensa. Ele era um bom homem. Lembro-me que era uma sexta-feira. Nós levantamos a bandeira num clima sombrio e cantou-se o Hino Nacional. Ouvimos falar do seu falecimento como um rumor e esperávamos a confirmação do diretor da escola, na esperança que não fosse mais do que isso, um rumor. A sua família tinha sido atacada na noite anterior. O grupo rebelde procurava sempre o homem da casa e acabou por encontrá-lo escondido no teto. Ele foi encontrado e morto a tiro perante a sua esposa e filhos. Choramos em silêncio.     

A Educação salvou-nos a vida. Se não estivéssemos na escola, a maioria de nós teria perdido a vida, ou pior ainda, ter-se-ia tornado crianças-soldados. A educação era a única maneira de sair desta ameaça. Tínhamos que dar a conhecer naquela região que há melhores formas de resolver os conflitos, que não a guerra. Gostaríamos de ensinar na região que a terra não é o único bem que se pode ter. As luzes do dormitório tinham que ser desligadas durante a noite, para não atrair atenção, só as luzes de segurança da rua ficavam ligadas. Então, todas as noites, até que as primeiras horas da manhã, todos nós rastejávamos até à janela e procurávamos ler com as luzes difusas da rua. Se a nossa cama ficasse perto da janela teríamos ou teríamos mais amigos, prestavam-nos mais favores ou teríamos mais pão durante a pausa do chá no dia seguinte.                

Estar na escola garantia-nos comida e água. A comida era um bem escasso durante esse período. A região de Monte Elgon é uma área de solos férteis, portanto, a maior parte da nossa produção de alimentos está nas quintas. Os rebeldes queimaram uma boa parte dos celeiros, de forma a paralisar a aldeia. O único alimento disponível era o milho seco mas, que precisava ser levado à moagem [...] para ser moído. No entanto as moagens estavam fechadas por motivos de insegurança. Todas as lojas estavam fechadas, ou haviam sido saqueadas pelos rebeldes, portanto havia escassez de alimentos. Ao contrário de toda a aldeia, nós ainda poderíamos ter três refeições por dia e beber água limpa.

A maioria das meninas foram violadas e isso deixou profundas marcas psicológicas e estas feridas são, em mais casos, quase incuráveis. Muitas mulheres e meninas foram molestadas e acabaram por ficar infetadas com VIH e/ou ficaram grávidas. Para nós que estávamos na escola, a educação permitiu-nos conservar a nossa inocência. Lembro-me de quando os resultados dos exames escolares saíram, esses indicavam que a nossa escola tinha obtido a melhor classificação da sua história. O governo tinha conseguido, de alguma forma, conter a situação. A maioria de nós passou de classe e foi para escolas públicas prestigiadas. Eu fui uma delas[...].

Lembro-me de tudo isto como se tivesse sido ontem. Agora estou no meu último ano da Universidade e foi a Educação que me trouxe até aqui. Em breve poderei comprar um carro, conduzir até à minha aldeia e ter crianças na beira da estrada a receber-me e poderei dar-lhes doces mas, ainda não estou lá.”